13.2.07

Breve carta de um até breve, numa estação;

“A.,

não quero que me perdoes pelo erro não cometi, não quero que me esperes na calçada de um domingo, não quero que sonhes comigo. Não quero nada disso. Nem perfeição nem negligência. Quero uma coisa somente.
Estejas bem e não-tão diferente, na mesma casa, talvez mesmo jardim. Mas, sendo de mudar, desejo bons caminhos. Que a janela continue dando pras estrelas mais distantes, que a música vezenquando se alimente. Que as aulas estejam sendo boas; adoráveis os livros, singulares as pessoas, em ordem os discos. Ou desordem, se quiseres.
Vai bem a família? Lembro-me do verão passado, de Cecília, de Drummond. Lembro-me de filmes antigos, mas sobretudo os vindouros, que têm gosto de morangos (morangos mofados?). lembro de um teu sorriso, aquele que na alma me gravaste e, decerto, não te lembras nem desejas. Compreendo – mas lembro.
Sorrio ao pensar que essa carta é um silêncio enrustido. E o que não houvera sido, “desde tempos imemoriais”? De silêncio em silêncio vive o homem, ainda que eu discorde. Hoje desfaço a coerência, sem disfarces nem ausência: tento. Percebes?
Olha, agora me vem à cabeça aquela cena, daquele banco, daquele dia, ah, daquele dia. Talvez nem lembres, aliás, bem certo, mas não tem importância, já disse não ser o que quero. Tens visto ainda os meninos, ido muito ao nosso lugar? Há tempos não vou mais. Não por não sentir falta, mais por falta de tempo.
E se o tempo? nem sabes... Sonhei contigo e até, muitas vezes, escrevi cartas, mas o mar era bravio: não chegaria.
Escuta, escrevo estas linhas em um banco de estação, um copo na mão – nem sei o que bebo, parto bem breve. Compromissos, profissão, pelo sim e pelo não, aceitei uma proposta. Vou como costumo ir, bem sabes, com a blusa aberta e uma rosa em botão, que esperar me estorva.
Falar em esperar, esse trem que não chega. Mas por certo não é nada, só minha velha mania de chegar cedo. Pois bem, não sei o que te dizer no momento mesmo em que digo, um garoto me sorri. Pede um isqueiro pro pai, uma pena, eu não fumo. O menino se vira e vai embora. Tão estranho, uma tristeza pesada me bateu com o bater daquela porta... Uma lágrima, no agora. Ando assim mesmo tão frágil?
Talvez tenha visto a mim no menino. Ou, o que é mais provável, visto a ti. O sorriso ou o sentir, nem sei. Essa espera me consome, preciso não esperar. Às vezes tenho a impressão de que os minutos matar-me-ão mais cedo que a bebida – grande conclusão, vês, já que não bebo. Decerto sempre supus minha ebriedade, ebriedade da vida que a mim me basta (frase não minha, de Pessoa, diga-se de passagem). E nunca basta.
E me disseram, olha se tem cabimento, que as nuvens não são feitas de algodão (!). Sim, começo a perder o lugar de meu eu, que será que digo sem me saber.
Ah, não te incomodes nem te machuques, pelo amor dos deuses nossos, jamais meu intento. Queria, pudera, diminuir o silêncio. Silêncio aqui dentro, silêncio dessas vozes nas ruas, silêncio nosso de cada dia. Quis, será que entendes, dizer adeus já que abraçar-te não podia.
E mal imaginas o aperto do meu peito ao proferir palavra adeus. Paro pra respirar e olhar o céu, é dia claro, sabes? De um azul até invejável aos melhores vestidos, e aqui sorrio, por que será.
As pessoas andam rápido, fogem de si mesmas? Parece que vão perder o trem (um espasmo, um gargalhar, que humor angustiado esse meu: humor de amor que se perdeu). Pois é como te disse, parece que vão perder o trem, e perdão pela bobagem. É minha maneira de continuar. Esperando?
Começar a pensar que errei a hora.
Olha, andorinhas. Estorninhos e pombos, quantos deles e eu nem notava! Seria bom ter algo a lhes dar. Não tenho, realmente vou de viagem e só levo o chapéu, bagagens me deprimem. Talvez penses no disparate disso tudo, se lá vou morar, mas, ora, já me arranjo, não foi sempre assim?
Vejo rostos conhecidos que nunca conheci – nem irei conhecer. Ah, sim, minto! Trouxe um livro, poemas. Não, não escolhi, foi o primeiro, o que vi sobre a cama. E adivinha. Era Hilda, que profético. Lembras dessa palavra? Tão vivaz a infância. Prefiro crer que eu só continuo. Jamais em pureza, mas em tentar.
Sim, e se alguma vez me magoaste, ah, sem hipocrisias, te perdôo. Não por bondade, mas e mais por precisar. Porque amo. Porque só assim posso. Continuar? Se às vezes te odiei por quase mais que segundos, tanto mais te amei ao amanhecer. Não levo mágoa, levo dor. Não são iguais, digo-te, e precisamente sei que sabes, mas quis repeti-lo. De ti, levo as tardes. E as estrelas e as cartas. Ah, pois é, outro esquecimento, mas dessa vez não uma mentira, esqueci mesmo:
As tuas cartas. Ficaram, lembro, na mesa da cozinha, quando eu relia ao tomar café. Não pude o café, não pude as cartas; saí e esqueci-me de voltar.
Não, A., não me esqueci de coisa alguma. E, se o tiver feito, foi a mim: esqueci-me de mim ao acordar de um grande sonho. Outra coisa – o que tinha de entregar-te dei ao nosso amigo. Se as quiseres, ele há de dar-te.
Por favor, não penses nunca que eu não quis. Ou, muito menos, que te quero mal. Jamais houve, e aqui te juro, quem eu quisesse mais. Tampouco pra ser meu, o bastante pra cuidar. Ontem assisti a uma peça e quase te chamei. Mas, depois de tanto tempo, talvez eu tenha aprendido a respeitar a tua escolha.
E, ora, ora, se não é o meu trem. Parto em quinze minutos. Parto, já tendo me partido. Quase que te digo, mas achei por bem dizê-lo agora.
Cuida-te bem, desejo o de melhor. Para ti e para todos que tu queres. Teus caminhos e escolhas: viva, muito. Não chores (e não creia que aqui a prepotência de crer chorares tu por ir-me embora). Por mim e por ti, não chores. Ainda que às vezes em ti doa, ainda que quase nada eu seja, hás de ter-me sempre ao lado. Se quisesses, num chamado...
Agora vou.
Não tive a coragem de tentar mais uma vez. Talvez porque não houvesse o mais. Minto, esse ainda é um tentar.
Um dia dei-te a alma em um segredo. Hoje dou-te o segredo em minha alma. Deixo-te essa carta embaixo desse banco; o mar era bravio – não chegaria.

Até sempre,
S. ”

9 comentários:

Anônimo disse...

Que lindo..
Muito,muito mesmo.

Marília Passos disse...

diz quem é? =~

Marília Passos disse...

diz quem é? =~

Marcelo Mesquita disse...

Simplesmente maravilhoso

Anônimo disse...

é um daqueles que a gente escreve nas ultimas folhas do caderno, pensando se entrega ou não.. pra no fim das contas jogar fora, achando melhor simplesmente 'let it go' =~~~

sublime,querida, sempre..de tão leves, seus dedos quase não tocam o lápis que o escreveram =****

Raiça Bomfim disse...

Tantos sentimentos sublimes, sutis...
Um coração delicado, sabe fazer a pena virar tema, virar vôo...

Anônimo disse...

lindo!

beijo

Anônimo disse...

vc tem ouvir hilda hist musicada por zeca baleiro! procure, e escute! muitoo bom! vai AMAR!




(.)

nada disse...

lindo...sublime...
trabalharei na cooperativa com o maior prazer nem que seja só pra publicar o que vc escreve...