23.6.07

Literatura erótica?!

I
Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca
Austera. Toma-me AGORA, ANTES
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.

Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.

Te descobres vivo sob um jogo novo.
Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo
Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.
[Hilda Hilst]

Tenho conversado ardentemente sobre o tema com os amigos no Por Mais Leitura (pra quem não sabe o tema do mês é Literatura e Sexo), e ardentemente discordamos de várias das arestas do tema. Felizmente sempre tem um ponto de intercessão, e o ponto dialético é a Hilda Hilst :P
Pra quem não leu, tem que ler. e quem já leu, ler mais, porque a mulher tem das maiores bibliografias - e é realmente a minha preferida e uma espécie de ponte entre o dito "lírico" e o "erótico", apesar de eu mesma não gostar de fazer essa secção.

Aqui um texto já escrito pro blog do PML, sobre isso, porque permanece o tema, e eu gosto muito dessas polêmicas:

A Mulher para além do Sexo.
Que "Mulher", vocês me perguntariam, e eu diria: todas, talvez. Mas escolhi aqui uma, a minha preferida, vamos dizer, e preferida também porque muito me representa:Hilda Hilst aqui já bem apresentada pelo Ary (ver post "O caderno rosa de Lori Lamby"), mas que continua sendo minha amiga de cabeceira, sobretudo e sobre todos.Mas por quê, então, esse título de "a Mulher para além do Sexo"? Nada mais simbólico nessa temática de Literatura e Sexo, permeando entrementes o Erotismo, nada mais simbólico do que falar de mulher, e com aquela que, na minha opinião, é a Mulher das mulheres.Falando especificamente dela, a Hilda, que foi durante toda a vida vista como uma "escritora erótica", e nada que a irritasse mais. Não por renegar o erotismo de seus versos, mas por achar esse rótulo demais limitado - e, no fim das contas, O QUE É LITERATURA ERÓTICA?
Devo dizer que sou uma leiga. E, aliás, toda vez que leio algo que pra mim soa erótico explicíto, de cara já desgosto, e não é por pudor excessivo: é que aquele tipo de palavras (senhor, nada pior que uma "buceta" no meio do parágrafo :P), aquela linguagem bordelística, sinceramente em nada me atrai. E aí me coloco não mais como Marília, mas como mulher lendo essas linhas (e vamos abstrair de coisas como "pudor" ou "criação paternalista", sim?): isso sinceramente não me toca. E a palavra no meio do texto podia ser pinto, pênis, pau, qualquer coisa, isso nunca me remete sequer a imagens, porque eu pulo essas linhas.E então deixa logo eu dizer: pra mim Literatura e Sexo não é só literatura erótica. E aqui entendamos literatura "erótica" como aquelas coisas em que o sexo está explícito, o ato em si, as terminologias anatômicas, anacrônicas e até vulgares. Eu gosto de ler Hilda Hilst quando ela fala de Sexo. E por quê? Porque ela sabe falar. Não vou aqui defender que ela saiba falar PORQUE é mulher. Mas de todas as coisas no mundo que eu leio sobre Sexo, sempre me atraem mais as escritas por mulheres. Tem o fator também de que a maioria dos autores conhecidos são realmente homens, inclusive nessa temática, e sempre o sexo, o ato, o coito, fica descrito pelas mãos de um homem: a visão da mulher, também, pelos olhos de um homem. E ouso pensar que é porque SOU mulher, é claro. Minha identificação vai por quem me representa: e olhe que já vi muitos autores homens representarem muito bem o universo feminino - mas sem dúvidas ninguém jamais bateu a Hilda.
E como lá em cima postei um tipo de poema, dos dela, aqui vai outro bem diverso.
Digam aí. Se fosse pra escolher um poema pra ler de novo, qual seria? :)
O de cima ou esse último?
"Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.
Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.
Que este amor só me veja de partida."
?

1.6.07

Na cantina - parte 1.

- Olhe em volta.
Ele o diz, e não é um sonho só. Sonho que se sonha só, eu sei, é sonho,mas o sonho junto... já nem sei.
- Olhe em volta, ele continua.
E o que ele quis dizer, perfeitamente, eu o sabia, mas não ia dizer, deixei-o a falar. e falar e falar. Sobre o desespero do mundo, o agônico do homem, a cultura quase perdida,os problemas sociais: tudo isso, menina, é apenas a ponta.Ele falava como quem não dá fim. Nem as palavras nem a si, tudo fica suspenso, menina,veja você que o mundo, ah, o mundo, "o mundo não vale o mundo, meu bem".Saberia ele estar a citar Drummond? Falava muito dos alemães.

O que eu sabia, devo dizer, é que por isso senti eu também saber, mas já não mais do mesmo jeito.Aquela inquietude a sobrevir da calmaria, quem já não havia, por segundos,angustiado a vida inteira?Nietzche tem lá sua razão, Thomas Mann também, e sobretudo Hermann Hesse, mas eu ainda fico com o Drummond e o velho estar-no-mundo.

O que dói, meu amigo, é o estar-no-mundo.E aquela coerência de que eu te falava, e tu me dizias um conceito outro a dizer a mesma coisa,é isso que eu vejo olhando em volta, a exata falta dela.

Dói quem não tem sequer a coerência. Não sei se aos 19 te posso dizer que essa é a necessidade básica, mas te digo com tranquilidade que nunca vi ninguém estarem paz sem ter aquela. A bendita (ou maldita, tu bem falas) coerência.
Dou-te apenas um outro conselho ao vento, muito embora saibas que não virás por cáa ler-me: as teorias, meu amigo, de nada valem sem a prática. Não é preciso ler Kant pra saber. ;)