21.1.08

És um louco, meu amigo, sempre foste. É que não te lembras nunca das esquinas passadas, e nem precisas que fique eu a remoer lembrança antiga daquelas que, esforçando, decerto lembras. O caso é que tens que parar com isso, Álvaro: já é tempo. Disseste-me observar as vagas, trate então de aprender com elas. Acaso esqueceste nosso tempo de escola? Todos aqueles devaneios de futuro e as leituras de um Hesse, um Pessoa, um José, nós sempre a tentar-nos fortes, e agora de novo inventas como tivesses 15 anos.
Coragem, homem! A vida não é só isso e nem pode sê-lo. Levanta esse corpo e sai dessas mesmas paragens. Se não te bastam as vagas, vai ao Tejo, muda os ares, vem ter comigo em nossa casa, Marta ficará feliz em te rever. Lembro-te que tua afilhada já fez 2 anos e não vieste à festa da pequena, que ficou muito sentida. Cecília te adora e manda abraços.
Presta bastante atenção, amigo: ou tu paras de nonas sinfonias ou viras um ébrio de uma vez por todas. Essa criatura, se é que existe e não é outra de tuas fantasias, não merece esse teu esmorecer.
Faz ouvir a voz da prudência é recomeça-te os caminhos diários, sem passar pelas ruas escusas, faz isso, Álvaro.

Forte abraço,

João.



- ouvindo: O silêncio das estrelas, Lenine.

19.1.08

desatino

Que loucura gigantesca eu ando sendo... Não podes sequer imaginar. Todos os dias a vagar por essas ruas, na busca incessante por aquela janela onde a vi uma vez, uma única vez, e jamais saiu de mim a dar-me espaços de consciência de mim mesmo sem si, aquele corpo, aquela voz forte e fugidia a um só tempo. Há meses persigo, há meses não sou eu, há meses sequer coisa nenhuma: sou só um vago, um vago entre nada e coisa alguma, na procura por aquela de quem sequer sei o nome.
Ouça, ouça aqui a nona sinfonia, e perceba que é aqui, é aqui que eu me perco, e ela nada. Ando a subir e a descer tantas ladeiras coloridas que a mim já não tem cor nenhuma. Invento assunto com os passantes, a dar ousadia às senhoras que passam num cortejo sabe Deus com quem, passei a tomar os desjejuns na tabacaria da Rua do Passo, na esperança desesperada de que talvez pudesse a ninfa por lá passar, quem sabe...
Desde aquela terça-feira inexplicável, em saindo do trabalho lendo-me os últimos papéis por assinar, aquele dia em que tropecei na pedra em falso e tive de abaixar-me por amarrar os sapatos. Foi no levantar-me desse gesto que vi, por uma janela do outro lado da rua, aquela bela a ler preguiçosamente na varanda. A trança volumosa caindo-lhe pelos ombros e o olhar compenetrado, tão sublime, que cautelosamente atravessei a rua, e fiquei embaixo daquela janela a fingir ler-me os papéis. Ouvia, então, a leitura baixa daquela moça, ouvia, ouvia sim os sons melodiosos das palavras sem entender palavra alguma, eram música: eram música...
As músicas, meu amigo, em meus ouvidos estão a deixar-me louco, fora de fuso, perdido, cego, sentido algum há ainda. E o trabalho e a família e os amigos, me perguntas, ora, que dúvida...! Nada eu vejo, nada eu sou, sou só essa espera, todos os dias, naquelas esquinas, naquelas portas.
E assim passaram semanas, e continuam a passar. Permaneço no meu banco, esquerdo do lado da praça Vinte e dois, moro numa casa de frente para o mar, vejo passarem as vagas todas as horas do dia, e nada, nada da princesa fugidia. Amigo, me faça um favor, não contes a ninguém onde moro, só a ela, se a ti vier perguntar.
Ouça, ouça a nona sinfonia, e depois me diga como fazer pra parar de vê-la, que já não posso fechar os olhos sem me morrer de agonia.

Do teu

Álvaro

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