31.5.07

[poema di minuto]

[nascido após ler algo muito bonito na casa da Antropóloga em marte ;) meus cumprimentos agradecidos por ter-me nascido o poema hehehe ingênuo, porém sincero, de uma lembrança há muito descansada =]



eu não era nada, não.
e ainda digo que não queria ser nada.
vês que hoje algo sou, por obra tua, obra minha e do destino
e ainda eras um menino quando tudo era começo.
hoje eu meio, tu nem sei.

mas sabes que aquele átimo no interlúdio de nós mesmos
aquele vil segundo em que tanto nos tocamos e nos fomos
embora de cada um de nós:
naquele tão momento é que eu começo,
feliz ou não, a ser o meu início, meu idílio, meu senão.

senão nada disso houvera sido, ex-amor.

e aquele que eu dizia ex-amor, hoje que mais posso ver
senão infindo, indizível indelével, vez que jamais me deixaria?
não me deixaria, querido amigo,
porque eu jamais te expulsaria

e tu jamais sem mim vivia.

13.5.07

Insônia.

Percebeu que estava sentado na mesa, mas não era isso o que queria. Queria talvez ir embora, esquecer-se dos gritos em volta, apagar os choros calados.

Queria talvez estar ébrio, ébrio e bem longe. Sem a raiva das injúrias ouvidas, sem o desejo de não-ser. Mas não era tão simples. Viver não era tão simples. Infelizmente, ele sabia. Sabia, decerto, de coisas demais e pessoas de menos. Ou seria o contrário? Ébrio, ébrio e bem longe.
O ruído baixo do vento a sussurrar na janela irritava-o, tanto quanto as conversas estapafúrdias na sala. Tudo parecendo irreal, sem que soubesse explicar. No fim, podia ser apenas real o suficiente pra sufocar bons julgamentos.
E é claro que a realidade aplaca os sentidos e obstrui um tanto a razão. Ainda que pensamentos sensatos não se devam de todo à abstração, dificilmente nasceriam em uma calçada movimentada repleta de rostos sem dono e de buzinas. Os grandes filósofos deviam (devem?) ser aqueles que, mesmo na realidade, guardavam para si os sentidos e a própria sensatez.
Sensatez no abstrato. Pensava nisso de vez em quando, mas os burburinhos do tudo e do nada acabavam-lhe com a paciência. Um contrasenso, era isso o que tudo era.
Curioso era que hoje tivesse compromissos. Sim, tinha. No entanto, sem fixos horários, deitara-se e lera um seu mestre. O acaso - do ocaso - não deixara que avançasse as páginas. Relutou, resignou, rabiscou.
Restrito e rendido, calou-se ao escrever. E o tempo, esse passava só. Ficava ele, ficavam nós. Queria apenas estar bem longe, sem mais saber seu nome e sem ter hora pra voltar. Podia? Sabia lá, talvez um dia tentasse.
Escrevia como quem passa, como insistia o Pessoa, e, logo em seguida, já era o que fica. Ficava onde - é que ele não sabia. Os gritos ainda ecoavam, apesar de todos já idos longe, gritos&gritos, uma estupidez, sempre pensou, por que não podiam resolver as mediocridades com olhares? Quiçá desenhos. Inventassem um modo qualquer, contanto que outro, algum que não o deixasse louco, que não o trancasse no quarto, esse cessar de mundo. Terá o mundo cessado? Ou foi apenas um calar momentâneo?
As paredes são como ele. Às vezes as paredes o comem. Verdade maior, no entanto, é dizer que ele é que come: come as paredes, o tempo, os livros e até a si, autofágico, verborrágico, mas sobretudo sozinho. Devia ter um sobretudo. Pra quê?! Pra morrer de calor mais ainda. Pensa consigo, rindo um horror, que até as ironias são amarelas. Acha que o amarelo o persegue e desiste de pensar nisso, dá um terror de dentro, e chega, chega tudo, passa por eternos oscilares. Quente, suor muito. “Mamãe dizia que era o calor”.
Transpira-se muito nessa ilha. Mas não era floresta? Já não sabe onde mora. Não sabe. E lá se vão longos minutos de silêncio interno, um desejo imenso de sair daquilo que nem sabe nomear, e uma inércia talvez maior de sequer mover-se. Pra que mover-se, se talvez os gritos voltem?
Achava que se perdia e parava ao continuar. Que tudo à sua volta acabava por diluí-lo, mas era hora. Hora de não saber. Hora de se arrumar, hora de ir embora.
Talvez fosse mesmo apenas mais um. Talvez isso sequer importasse. O tempo, esse sim, sempre passava. Não devia ele, tão bobo em seus papéis, parar? Parar pra onde, parar pra quê? Tolice, devia deixar de ser tolo.
O relógio bate. Que horas?! “Tantas...” Havia de ser mais forte, conciso e espontâneo. Duvidavam? Veriam. O dia hoje será bom, diz consigo, será bom e eu serei eu mesmo.
Talvez seja hoje a coroação. “Eu, rei de mim?” Engraçado.

6.5.07

Um jazz - ao sr. Bechet tocando.

Deslizou passo a passo na calçada ao som do jazz, sabia que devia chegar ao teatro. Haviam marcado, o show era cedo e dessa vez tão, mas tão importante, que tivera medo. Arrumou o violoncelo, afinado a custo, e não resistiu a uns goles e copos: bebeu pra relaxar e acabou indo naquele estado. Deslizando passo a passo, sabendo já de antemão do atraso óbvio, talvez pusesse tudo a perder. Mas não: ligaria e diria “façam sem mim”. Claro. E assim perdia o emprego.
Nervoso, bebia mais. E o jazz, meu Deus, o jazz era o delírio, queria tocar a peça o quanto antes, mas e se errasse algo? Estariam todos lá. Pensava, no entanto, que a luz, aquela luz, sempre o cegava. Que diferença, não via ninguém, e aí tinha um risco: se perdesse a marcação, não veria mais nada, nenhum dos companheiros. Em seguida, pensava que bobagem, “um músico experiente, tantos espetáculos, ensaios todos os dias, não tem nada a dar errado”.
E deslizava uns minutos confiante, até perceber que não sabia mais aonde ia. A mulher, antes de deixá-lo noite passada, sentenciara exatamente isso, que ele, o grande músico, já não sabia mais. Aonde ia, o que queria, o que dizer. Frases cruéis ela dissera, ele fingindo não ouvir. Antes ainda de fechar a porta, ela arriscara uma frase de efeito (e, ele observou, “mais sem jeito que a porta”),
- Aprenda a perder pra não perder a si.
Continuou fingindo até dormir. E dormiu sem sonhos.
Acordou sem a mulher do lado e, riu, “sem a mulher, mas com uma senhora ressaca”. Como de hábito, ainda sem comer, foi tocar. Sabia que a mulher (como a chamaria agora? Ex?) tinha razão: ele emagrecia progressivamente e só as olheiras prosperavam. Nem a barba lhe crescia mais, os cabelos caíam ralos. Apesar de bom músico, todos sabiam, não recebia mais propostas nem idéias bonitas dos amigos. Eles tinham medo das constantes neuroses do artista.
Neurose, repetia, fora isso o que dissera a analista. E grande coisa, pensava, naquela roupa sufocada, louca era ela, julgando por detrás dos oclinhos meio mundo a desocupada... E fora embora, ignorando mulher, analista, remédios e recomendações, tinha mesmo um grande espetáculo a montar. Tinha? Há quase um ano sem apresentar-se, mas ninguém precisava saber.
Pensava nisso esparsamente ao deslizar. Vontade de deslizar-lhe os dedos pelas cordas que nem Charlie Parker domava o sopro, ah, o Bird! Quem dera ter tocado com ele, sonho antigo. “Morreu dois anos antes de eu nascer, devia ter me esperado”.
Bessie! Meu Deus, estava ficando louco? Tocavam Bessie na esquina, então o mundo tinha jeito (e o som da esquina, num posto, era qualquer coisa menos jazz). Um mendigo pediu dinheiro, ele sorriu e, estando tonto, sentou-se de qualquer jeito, tomando só o cuidado com o querido amigo – a caixa tinha que estar intacta, guardava-lhe a alma.
- Você ouve, ouve?
O mendigo não responde, se não tem dinheiro nem comida, ele pensa, “sai do meu caminho, ô seu doido”. Doido, pensa ainda, pra estar de terno e sentado na lama. E, em seguida, “se é doido...” e já calcula as vantagens.
- Escuta, você sabe onde fica aquele teatro?
- Tem teatro aqui não, meu chapa.
- Não?!
Mas ele já sabia. Não queria mais chegar, queria só acompanhar a Bessie. Tonto, sim; doido, não. Se pensavam que ele não podia, veriam já. Ele, o grande, levantando da calçada e subindo ao palco.
- Ora vejam. Nunca vi público maior, perdi até o medo.

O mendigo ria do homem falando sozinho, ainda mais que descobrira com ele uma garrafa e aquela já era sua – ao menos isso.E o senhor músico, diante do público, sacou da sua arma, ajeitou a flor na lapela, um “Boa noite, Bessie”, pôs-se na melhor posição que pôde e tocou finalmente a sua música. Sua última música.