6.5.07

Um jazz - ao sr. Bechet tocando.

Deslizou passo a passo na calçada ao som do jazz, sabia que devia chegar ao teatro. Haviam marcado, o show era cedo e dessa vez tão, mas tão importante, que tivera medo. Arrumou o violoncelo, afinado a custo, e não resistiu a uns goles e copos: bebeu pra relaxar e acabou indo naquele estado. Deslizando passo a passo, sabendo já de antemão do atraso óbvio, talvez pusesse tudo a perder. Mas não: ligaria e diria “façam sem mim”. Claro. E assim perdia o emprego.
Nervoso, bebia mais. E o jazz, meu Deus, o jazz era o delírio, queria tocar a peça o quanto antes, mas e se errasse algo? Estariam todos lá. Pensava, no entanto, que a luz, aquela luz, sempre o cegava. Que diferença, não via ninguém, e aí tinha um risco: se perdesse a marcação, não veria mais nada, nenhum dos companheiros. Em seguida, pensava que bobagem, “um músico experiente, tantos espetáculos, ensaios todos os dias, não tem nada a dar errado”.
E deslizava uns minutos confiante, até perceber que não sabia mais aonde ia. A mulher, antes de deixá-lo noite passada, sentenciara exatamente isso, que ele, o grande músico, já não sabia mais. Aonde ia, o que queria, o que dizer. Frases cruéis ela dissera, ele fingindo não ouvir. Antes ainda de fechar a porta, ela arriscara uma frase de efeito (e, ele observou, “mais sem jeito que a porta”),
- Aprenda a perder pra não perder a si.
Continuou fingindo até dormir. E dormiu sem sonhos.
Acordou sem a mulher do lado e, riu, “sem a mulher, mas com uma senhora ressaca”. Como de hábito, ainda sem comer, foi tocar. Sabia que a mulher (como a chamaria agora? Ex?) tinha razão: ele emagrecia progressivamente e só as olheiras prosperavam. Nem a barba lhe crescia mais, os cabelos caíam ralos. Apesar de bom músico, todos sabiam, não recebia mais propostas nem idéias bonitas dos amigos. Eles tinham medo das constantes neuroses do artista.
Neurose, repetia, fora isso o que dissera a analista. E grande coisa, pensava, naquela roupa sufocada, louca era ela, julgando por detrás dos oclinhos meio mundo a desocupada... E fora embora, ignorando mulher, analista, remédios e recomendações, tinha mesmo um grande espetáculo a montar. Tinha? Há quase um ano sem apresentar-se, mas ninguém precisava saber.
Pensava nisso esparsamente ao deslizar. Vontade de deslizar-lhe os dedos pelas cordas que nem Charlie Parker domava o sopro, ah, o Bird! Quem dera ter tocado com ele, sonho antigo. “Morreu dois anos antes de eu nascer, devia ter me esperado”.
Bessie! Meu Deus, estava ficando louco? Tocavam Bessie na esquina, então o mundo tinha jeito (e o som da esquina, num posto, era qualquer coisa menos jazz). Um mendigo pediu dinheiro, ele sorriu e, estando tonto, sentou-se de qualquer jeito, tomando só o cuidado com o querido amigo – a caixa tinha que estar intacta, guardava-lhe a alma.
- Você ouve, ouve?
O mendigo não responde, se não tem dinheiro nem comida, ele pensa, “sai do meu caminho, ô seu doido”. Doido, pensa ainda, pra estar de terno e sentado na lama. E, em seguida, “se é doido...” e já calcula as vantagens.
- Escuta, você sabe onde fica aquele teatro?
- Tem teatro aqui não, meu chapa.
- Não?!
Mas ele já sabia. Não queria mais chegar, queria só acompanhar a Bessie. Tonto, sim; doido, não. Se pensavam que ele não podia, veriam já. Ele, o grande, levantando da calçada e subindo ao palco.
- Ora vejam. Nunca vi público maior, perdi até o medo.

O mendigo ria do homem falando sozinho, ainda mais que descobrira com ele uma garrafa e aquela já era sua – ao menos isso.E o senhor músico, diante do público, sacou da sua arma, ajeitou a flor na lapela, um “Boa noite, Bessie”, pôs-se na melhor posição que pôde e tocou finalmente a sua música. Sua última música.

2 comentários:

Gaby Zaupa disse...

Ah, moça, vá direto para o jornal, vá. Pra quê ficar perdendo tempo com essas besteiras de blog quando a senhora pode bem mais e sabe disso. :} Mas bem, adorei o texto. Deslizou bem facinho, como os passos do grande artista e como todo jazz de respeito. Texto de respeito, moça. Apareça qualquer dia, sim? Até. :*

- disse...

Muito profundo o texto. Concorod com a Gaby, vc escreve muito bem .. :D Obrigada pela visita e comentário no meu blogger .. Apareça mais vezes depois .. Beijins
=]