23.12.07

outro castelo

-meu reino por um sorriso, senhora;
-ora, quanta ousadia
-em te querer sorrindo?
- o ousar tratar-me por tu
- dize então como queres que chame, pois não?
- não, quero me chame não, faça o favor
- que maldade, senhorita, se apenas desejo bom dia
- desejado? tenha-o o senhor também

e assim você perde o príncipe, princesa.
quantas músicas caindo pelos dedos,
em teus segredos todos ficando guardados
no canto do quarto,

um dia explodes.
de novo?

22.12.07

ahm?

Eu lá sei de nada, José.
Devia saber?


Nuvens?
que nuvens?
o sol se põe todos os dias dentro de si
pra nascer, amanhã, dentro de mim.


Vi nada, José
Na hora eu fugi da foto
tranquei as chaves no carro

abstração é essa hora, cinco da tarde não me entra,
convenço-me de silêncios e acabou-se

e inda me pedes coerência?
Haja santa
-incrivelmente-
paciência.

18.12.07

Dos súbitos

- escrito assim, subitamente, sem pretensões.




Nas curvas da estrada de mim,
era assim como um silêncio em si bemol, dá pra entender?
E eu abri a mochila, tirei a gaita.
Tirei as fotos, tirei os sons,
coloquei duas flores,
três amores,

e eu,
ali de volta.

Na outra esquina, vai saber
é como me encontrar outra vez

ou a si, de outro ângulo."

11.12.07

Hora íntima.

[vontade de encenar esse poema. se eu tivesse algum talento =P ]

Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?
Quem, em meio ao funeral
Dirá de mim: – Nunca fez mal...
Quem, bêbedo, chorará em voz alta
De não me ter trazido nada?
Quem virá despetalar pétalas
No meu túmulo de poeta?
Quem jogará timidamente
Na terra um grão de semente?
Quem elevará o olhar covarde
Até a estrela da tarde?
Quem me dirá palavras mágicas
Capazes de empalidecer o mármore?
Quem, oculta em véus escuros
Se crucificará nos muros?
Quem, macerada de desgosto
Sorrirá: – Rei morto, rei posto...
Quantas, debruçadas sobre o báratro
Sentirão as dores do parto?
Qual a que, branca de receio
Tocará o botão do seio?
Quem, louca, se jogará de bruços
A soluçar tantos soluços
Que há de despertar receios?
Quantos, os maxilares contraídos
O sangue a pulsar nas cicatrizes
Dirão: – Foi um doido amigo...
Quem, criança, olhando a terra
Ao ver movimentar-se um verme
Observará um ar de critério?
Quem, em circunstância oficial
Há de propor meu pedestal?
Quais os que, vindos da montanha
Terão circunspecção tamanha
Que eu hei de rir branco de cal?
Qual a que, o rosto sulcado de vento
Lançará um punhado de sal
Na minha cova de cimento?
Quem cantará canções de amigo
No dia do meu funeral?
Qual a que não estará presente
Por motivo circunstancial?
Quem cravará no seio duro
Uma lâmina enferrujada?
Quem, em seu verbo inconsútil
Há de orar: – Deus o tenha em sua guarda.
Qual o amigo que a sós consigo
Pensará: – Não há de ser nada...
Quem será a estranha figura
A um tronco de árvore encostada
Com um olhar frio e um ar de dúvida?
Quem se abraçará comigo
Que terá de ser arrancada?
Quem vai pagar o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?


[Vinicius de Moraes]




A Hilda pegou também :P

9.12.07

Encontrei a velha carta escondida. Mal escondida, decerto, que lembro tê-la escondido pra ser ele a achar, quando voltasse...Não voltou.
Longos minutos olhando, sem ter coragem, melhor nem ler. Não leio.
Faço pior: pego o telefone.
Ligo?

ô,babe, faça isso não, vai doer.

e escondo de novo, até o silêncio das cartas manchadas,
marcadas,
cindidas,

direi sim quando for a hora.
Agora?

O destino brinca, senhores, mas hoje ele não me pega.

23.6.07

Literatura erótica?!

I
Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca
Austera. Toma-me AGORA, ANTES
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.

Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.

Te descobres vivo sob um jogo novo.
Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo
Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.
[Hilda Hilst]

Tenho conversado ardentemente sobre o tema com os amigos no Por Mais Leitura (pra quem não sabe o tema do mês é Literatura e Sexo), e ardentemente discordamos de várias das arestas do tema. Felizmente sempre tem um ponto de intercessão, e o ponto dialético é a Hilda Hilst :P
Pra quem não leu, tem que ler. e quem já leu, ler mais, porque a mulher tem das maiores bibliografias - e é realmente a minha preferida e uma espécie de ponte entre o dito "lírico" e o "erótico", apesar de eu mesma não gostar de fazer essa secção.

Aqui um texto já escrito pro blog do PML, sobre isso, porque permanece o tema, e eu gosto muito dessas polêmicas:

A Mulher para além do Sexo.
Que "Mulher", vocês me perguntariam, e eu diria: todas, talvez. Mas escolhi aqui uma, a minha preferida, vamos dizer, e preferida também porque muito me representa:Hilda Hilst aqui já bem apresentada pelo Ary (ver post "O caderno rosa de Lori Lamby"), mas que continua sendo minha amiga de cabeceira, sobretudo e sobre todos.Mas por quê, então, esse título de "a Mulher para além do Sexo"? Nada mais simbólico nessa temática de Literatura e Sexo, permeando entrementes o Erotismo, nada mais simbólico do que falar de mulher, e com aquela que, na minha opinião, é a Mulher das mulheres.Falando especificamente dela, a Hilda, que foi durante toda a vida vista como uma "escritora erótica", e nada que a irritasse mais. Não por renegar o erotismo de seus versos, mas por achar esse rótulo demais limitado - e, no fim das contas, O QUE É LITERATURA ERÓTICA?
Devo dizer que sou uma leiga. E, aliás, toda vez que leio algo que pra mim soa erótico explicíto, de cara já desgosto, e não é por pudor excessivo: é que aquele tipo de palavras (senhor, nada pior que uma "buceta" no meio do parágrafo :P), aquela linguagem bordelística, sinceramente em nada me atrai. E aí me coloco não mais como Marília, mas como mulher lendo essas linhas (e vamos abstrair de coisas como "pudor" ou "criação paternalista", sim?): isso sinceramente não me toca. E a palavra no meio do texto podia ser pinto, pênis, pau, qualquer coisa, isso nunca me remete sequer a imagens, porque eu pulo essas linhas.E então deixa logo eu dizer: pra mim Literatura e Sexo não é só literatura erótica. E aqui entendamos literatura "erótica" como aquelas coisas em que o sexo está explícito, o ato em si, as terminologias anatômicas, anacrônicas e até vulgares. Eu gosto de ler Hilda Hilst quando ela fala de Sexo. E por quê? Porque ela sabe falar. Não vou aqui defender que ela saiba falar PORQUE é mulher. Mas de todas as coisas no mundo que eu leio sobre Sexo, sempre me atraem mais as escritas por mulheres. Tem o fator também de que a maioria dos autores conhecidos são realmente homens, inclusive nessa temática, e sempre o sexo, o ato, o coito, fica descrito pelas mãos de um homem: a visão da mulher, também, pelos olhos de um homem. E ouso pensar que é porque SOU mulher, é claro. Minha identificação vai por quem me representa: e olhe que já vi muitos autores homens representarem muito bem o universo feminino - mas sem dúvidas ninguém jamais bateu a Hilda.
E como lá em cima postei um tipo de poema, dos dela, aqui vai outro bem diverso.
Digam aí. Se fosse pra escolher um poema pra ler de novo, qual seria? :)
O de cima ou esse último?
"Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.
Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.
Que este amor só me veja de partida."
?

1.6.07

Na cantina - parte 1.

- Olhe em volta.
Ele o diz, e não é um sonho só. Sonho que se sonha só, eu sei, é sonho,mas o sonho junto... já nem sei.
- Olhe em volta, ele continua.
E o que ele quis dizer, perfeitamente, eu o sabia, mas não ia dizer, deixei-o a falar. e falar e falar. Sobre o desespero do mundo, o agônico do homem, a cultura quase perdida,os problemas sociais: tudo isso, menina, é apenas a ponta.Ele falava como quem não dá fim. Nem as palavras nem a si, tudo fica suspenso, menina,veja você que o mundo, ah, o mundo, "o mundo não vale o mundo, meu bem".Saberia ele estar a citar Drummond? Falava muito dos alemães.

O que eu sabia, devo dizer, é que por isso senti eu também saber, mas já não mais do mesmo jeito.Aquela inquietude a sobrevir da calmaria, quem já não havia, por segundos,angustiado a vida inteira?Nietzche tem lá sua razão, Thomas Mann também, e sobretudo Hermann Hesse, mas eu ainda fico com o Drummond e o velho estar-no-mundo.

O que dói, meu amigo, é o estar-no-mundo.E aquela coerência de que eu te falava, e tu me dizias um conceito outro a dizer a mesma coisa,é isso que eu vejo olhando em volta, a exata falta dela.

Dói quem não tem sequer a coerência. Não sei se aos 19 te posso dizer que essa é a necessidade básica, mas te digo com tranquilidade que nunca vi ninguém estarem paz sem ter aquela. A bendita (ou maldita, tu bem falas) coerência.
Dou-te apenas um outro conselho ao vento, muito embora saibas que não virás por cáa ler-me: as teorias, meu amigo, de nada valem sem a prática. Não é preciso ler Kant pra saber. ;)

31.5.07

[poema di minuto]

[nascido após ler algo muito bonito na casa da Antropóloga em marte ;) meus cumprimentos agradecidos por ter-me nascido o poema hehehe ingênuo, porém sincero, de uma lembrança há muito descansada =]



eu não era nada, não.
e ainda digo que não queria ser nada.
vês que hoje algo sou, por obra tua, obra minha e do destino
e ainda eras um menino quando tudo era começo.
hoje eu meio, tu nem sei.

mas sabes que aquele átimo no interlúdio de nós mesmos
aquele vil segundo em que tanto nos tocamos e nos fomos
embora de cada um de nós:
naquele tão momento é que eu começo,
feliz ou não, a ser o meu início, meu idílio, meu senão.

senão nada disso houvera sido, ex-amor.

e aquele que eu dizia ex-amor, hoje que mais posso ver
senão infindo, indizível indelével, vez que jamais me deixaria?
não me deixaria, querido amigo,
porque eu jamais te expulsaria

e tu jamais sem mim vivia.

13.5.07

Insônia.

Percebeu que estava sentado na mesa, mas não era isso o que queria. Queria talvez ir embora, esquecer-se dos gritos em volta, apagar os choros calados.

Queria talvez estar ébrio, ébrio e bem longe. Sem a raiva das injúrias ouvidas, sem o desejo de não-ser. Mas não era tão simples. Viver não era tão simples. Infelizmente, ele sabia. Sabia, decerto, de coisas demais e pessoas de menos. Ou seria o contrário? Ébrio, ébrio e bem longe.
O ruído baixo do vento a sussurrar na janela irritava-o, tanto quanto as conversas estapafúrdias na sala. Tudo parecendo irreal, sem que soubesse explicar. No fim, podia ser apenas real o suficiente pra sufocar bons julgamentos.
E é claro que a realidade aplaca os sentidos e obstrui um tanto a razão. Ainda que pensamentos sensatos não se devam de todo à abstração, dificilmente nasceriam em uma calçada movimentada repleta de rostos sem dono e de buzinas. Os grandes filósofos deviam (devem?) ser aqueles que, mesmo na realidade, guardavam para si os sentidos e a própria sensatez.
Sensatez no abstrato. Pensava nisso de vez em quando, mas os burburinhos do tudo e do nada acabavam-lhe com a paciência. Um contrasenso, era isso o que tudo era.
Curioso era que hoje tivesse compromissos. Sim, tinha. No entanto, sem fixos horários, deitara-se e lera um seu mestre. O acaso - do ocaso - não deixara que avançasse as páginas. Relutou, resignou, rabiscou.
Restrito e rendido, calou-se ao escrever. E o tempo, esse passava só. Ficava ele, ficavam nós. Queria apenas estar bem longe, sem mais saber seu nome e sem ter hora pra voltar. Podia? Sabia lá, talvez um dia tentasse.
Escrevia como quem passa, como insistia o Pessoa, e, logo em seguida, já era o que fica. Ficava onde - é que ele não sabia. Os gritos ainda ecoavam, apesar de todos já idos longe, gritos&gritos, uma estupidez, sempre pensou, por que não podiam resolver as mediocridades com olhares? Quiçá desenhos. Inventassem um modo qualquer, contanto que outro, algum que não o deixasse louco, que não o trancasse no quarto, esse cessar de mundo. Terá o mundo cessado? Ou foi apenas um calar momentâneo?
As paredes são como ele. Às vezes as paredes o comem. Verdade maior, no entanto, é dizer que ele é que come: come as paredes, o tempo, os livros e até a si, autofágico, verborrágico, mas sobretudo sozinho. Devia ter um sobretudo. Pra quê?! Pra morrer de calor mais ainda. Pensa consigo, rindo um horror, que até as ironias são amarelas. Acha que o amarelo o persegue e desiste de pensar nisso, dá um terror de dentro, e chega, chega tudo, passa por eternos oscilares. Quente, suor muito. “Mamãe dizia que era o calor”.
Transpira-se muito nessa ilha. Mas não era floresta? Já não sabe onde mora. Não sabe. E lá se vão longos minutos de silêncio interno, um desejo imenso de sair daquilo que nem sabe nomear, e uma inércia talvez maior de sequer mover-se. Pra que mover-se, se talvez os gritos voltem?
Achava que se perdia e parava ao continuar. Que tudo à sua volta acabava por diluí-lo, mas era hora. Hora de não saber. Hora de se arrumar, hora de ir embora.
Talvez fosse mesmo apenas mais um. Talvez isso sequer importasse. O tempo, esse sim, sempre passava. Não devia ele, tão bobo em seus papéis, parar? Parar pra onde, parar pra quê? Tolice, devia deixar de ser tolo.
O relógio bate. Que horas?! “Tantas...” Havia de ser mais forte, conciso e espontâneo. Duvidavam? Veriam. O dia hoje será bom, diz consigo, será bom e eu serei eu mesmo.
Talvez seja hoje a coroação. “Eu, rei de mim?” Engraçado.

6.5.07

Um jazz - ao sr. Bechet tocando.

Deslizou passo a passo na calçada ao som do jazz, sabia que devia chegar ao teatro. Haviam marcado, o show era cedo e dessa vez tão, mas tão importante, que tivera medo. Arrumou o violoncelo, afinado a custo, e não resistiu a uns goles e copos: bebeu pra relaxar e acabou indo naquele estado. Deslizando passo a passo, sabendo já de antemão do atraso óbvio, talvez pusesse tudo a perder. Mas não: ligaria e diria “façam sem mim”. Claro. E assim perdia o emprego.
Nervoso, bebia mais. E o jazz, meu Deus, o jazz era o delírio, queria tocar a peça o quanto antes, mas e se errasse algo? Estariam todos lá. Pensava, no entanto, que a luz, aquela luz, sempre o cegava. Que diferença, não via ninguém, e aí tinha um risco: se perdesse a marcação, não veria mais nada, nenhum dos companheiros. Em seguida, pensava que bobagem, “um músico experiente, tantos espetáculos, ensaios todos os dias, não tem nada a dar errado”.
E deslizava uns minutos confiante, até perceber que não sabia mais aonde ia. A mulher, antes de deixá-lo noite passada, sentenciara exatamente isso, que ele, o grande músico, já não sabia mais. Aonde ia, o que queria, o que dizer. Frases cruéis ela dissera, ele fingindo não ouvir. Antes ainda de fechar a porta, ela arriscara uma frase de efeito (e, ele observou, “mais sem jeito que a porta”),
- Aprenda a perder pra não perder a si.
Continuou fingindo até dormir. E dormiu sem sonhos.
Acordou sem a mulher do lado e, riu, “sem a mulher, mas com uma senhora ressaca”. Como de hábito, ainda sem comer, foi tocar. Sabia que a mulher (como a chamaria agora? Ex?) tinha razão: ele emagrecia progressivamente e só as olheiras prosperavam. Nem a barba lhe crescia mais, os cabelos caíam ralos. Apesar de bom músico, todos sabiam, não recebia mais propostas nem idéias bonitas dos amigos. Eles tinham medo das constantes neuroses do artista.
Neurose, repetia, fora isso o que dissera a analista. E grande coisa, pensava, naquela roupa sufocada, louca era ela, julgando por detrás dos oclinhos meio mundo a desocupada... E fora embora, ignorando mulher, analista, remédios e recomendações, tinha mesmo um grande espetáculo a montar. Tinha? Há quase um ano sem apresentar-se, mas ninguém precisava saber.
Pensava nisso esparsamente ao deslizar. Vontade de deslizar-lhe os dedos pelas cordas que nem Charlie Parker domava o sopro, ah, o Bird! Quem dera ter tocado com ele, sonho antigo. “Morreu dois anos antes de eu nascer, devia ter me esperado”.
Bessie! Meu Deus, estava ficando louco? Tocavam Bessie na esquina, então o mundo tinha jeito (e o som da esquina, num posto, era qualquer coisa menos jazz). Um mendigo pediu dinheiro, ele sorriu e, estando tonto, sentou-se de qualquer jeito, tomando só o cuidado com o querido amigo – a caixa tinha que estar intacta, guardava-lhe a alma.
- Você ouve, ouve?
O mendigo não responde, se não tem dinheiro nem comida, ele pensa, “sai do meu caminho, ô seu doido”. Doido, pensa ainda, pra estar de terno e sentado na lama. E, em seguida, “se é doido...” e já calcula as vantagens.
- Escuta, você sabe onde fica aquele teatro?
- Tem teatro aqui não, meu chapa.
- Não?!
Mas ele já sabia. Não queria mais chegar, queria só acompanhar a Bessie. Tonto, sim; doido, não. Se pensavam que ele não podia, veriam já. Ele, o grande, levantando da calçada e subindo ao palco.
- Ora vejam. Nunca vi público maior, perdi até o medo.

O mendigo ria do homem falando sozinho, ainda mais que descobrira com ele uma garrafa e aquela já era sua – ao menos isso.E o senhor músico, diante do público, sacou da sua arma, ajeitou a flor na lapela, um “Boa noite, Bessie”, pôs-se na melhor posição que pôde e tocou finalmente a sua música. Sua última música.

25.4.07

Entre os breves espaços do tempo não há
ninguém
ousando viver o tempo
seguindo ao som do vento
sabendo que, a todo tempo,
o tempo pode acabar.

na sua janela não era nada, meu bem
apenas o nosso espelho,
partido talvez no meio
- "parto, já tendo me partido"

é aí que te digo
da brevidade do tempo
necessidade de anseio
viver do começo ao meio
- "e o final que venha sozinho",

vez que os breves espaços de vento,
confesso

perdi no mei do caminho.

.

19.4.07

Cálice de curta noite.

“Sorver de vários goles um grande cálice de mim. Ser, em vivas gotas, a não-necessidade de ser nada: ser E não-ser, eis a questão. Sinceramente eu, sem ser somente, jamais ausente, sem lembranças ou semente de passado.
Outra vez o começar tudo de velho – te renego, te renego, te renego. Três vezes, que são seis. Vocês, todos vocês, esparsas memórias de um eu-triste, o que eu sei é que existe, existe Eu. E não assim, juro, sem um fim, sou em mim o que nem posso.
Me observo e me disfarço, desfaço percebendo o desapercebido do espelho. Aqui, de meu lugar, já fui você. E também aquele. Quer me fazer um favor? Preciso de uma massagem. Ah, malícia, eu, logo EU, tu dizes? Gosto é de quebrar regra. Sobretudo as convenções. Sobrenada as omissões. Ouviste?
Por certo, és tu mesmo, dessa mesa, que me olhas. Sobretudo as omissões. Me conta o que queres, sem que omitas nada, talvez eu não hesite em ser tua. E não porque eu valha muito – é de tua incapacidade. Que é a minha, que é a deles.
Mas, como eu dizia, sorver de vários goles um grande cálice de mim. Queres um pouco? És um louco, um SÓBRIO. Pobre homem. Já pensaste que podes estar morto? Mor-to. Bem muito louco, não pouco, será que pensas. Diria Não pensa, diria Me tenta. Decerto sou orgulhosa, mas queres saber?
Gosto de rosas. Brancas.
Gosto de ouvir, mas hoje não quero uma palavra tua. Só me toque de aviso prévio, quero dançar. Pois não danças? Que esperança, então! Até, rapaz.
E também fui o rapaz na mesa. O homem na mesa. O vazio na mesa. A mesa. A. Fui céu de estrelas e sol nascendo, fui menina brincando, mulher resolvendo. Resolver? Resolver é uma maçada. Palhaçada de mim de outros tempos, que invento esse meu. O que importa? Nem eu nem ninguém.
A vida, a vida é que importa.
Honro a vida com minhas palavras?! Com meu sangue. Com meu riso e meu pranto, ah, o encanto da vida. Alguém me tire pra dançar, que já devaneio, hum? Não, não você.
Ah, que bom encontrar você, amigos andam difíceis por aqui. Como vai? Perdeu João, como assim perdeu? Ah, procuremos, pois. Vejo que está triste, não fique, mais tarde, bem tarde, voltamos pra casa e contamos pros filhos. E netos? E tudo.
Sim, confesso, foi bem nessa música, dói-me como a falta de existir. Nem quero que eu me prove que eu não existo. Que eu não vivo tanto e nem omito o tempo inteiro. Omito, logo existo! Ah, Descartes, me diga dessa.
Olha, moça, não achamos João, mas eu juro que eu preciso dançar. Luz, som, câmera, ação ou não: preciso. Vou. Você vem? Te ligo, então. Ah, sim, até.
Eu, plena. De quê? De Vida. De mim.
Sorver de vários goles um grande cálice. ”

3.4.07

Fevereiro, quatro.

Fevereiro, quatro.

O bom é que a vida não pare. O bom é que a vida não desça. Vindo o que vier, a vida dança, a vida cala, a vida grita. Estupidez achar que pare por um choro: a vida é um coro que não pára de pintar.
De cair, de rodar. É o menino que pisa na bola e se acaba de rir, é a moça que chora dos pulsos cortados sem se cortar. É o tempo que anda. E o que não anda, também. O pulsar só pulsa, o sentir só sente e, se não, se mente, mente-se, cabou.
Pensei, pensei num pente. E aí o dente e aí a morte. E aí a vida e aí o sábado. Prosados versos, prezados versos, versejados densos, e, se minto, tento esquecer do medo. Mas, segredo, não conte a ninguém, por ora vou bem, e o menino corre.

29.3.07

Um solo de gaita.

.


O céu de estanho lá em cima
e na estrada uns pés de caminho.
No interstício és a gaita
cantada de verbos alheios,
sorrateiro soprando versos
bela e velha mochila nas costas,
por enquanto não somos nada
além de cinzas sozinhos.
Mas é da cinza de tanto tempo
que se segue os passos ausentes
achando toda a resposta

naquele solo de gaita.

Por mais que ninguém dissesse
e caronas fossem difíceis
os carros sempre passavam
por volta daquelas montanhas.
Insistia dizer que tuas
tuas montanhas tantas
tua mochila nas costas
e teu destino nos pés.

Teu instrumento brinca
enquanto segues olhando
o vento batendo nas costas
e fingindo não ser contigo.
Espanta é que seja tanto
que seja verso e seja amigo
que seja solo e seja gaita,
e ainda não tenha um próprio caminho.

há de ser feito conforme os pés,
é assim que sempre respondes
à pergunta que tu mesmo começas

naquele solo de gaita.



Uns verbos alheios na carona que achaste
de ontem e sempre em diante
pegas a tua mochila, debaixo do céu de caminho
e da estrada de estanho.

Até quando seremos seguindo?
vai sabendo tocando a gaita,
que é bem na próxima nota
que se lhe revela o destino.
.

21.3.07

Carta X.

.

Acordo e não sei se foi sonho. Bom dia, A, que renasce, renasce pessoa outra ou deliro eu? Minhas mãos brincando teus cabelos; o sorriso que me deste; o “bem muito” que disseste ao entrar sala adentro pra abraçar-me. Naquele instante, A, amei-te a vida inteira.

Carta em mãos e tu nos olhos de verdade, voltei aos tempos de crer e acreditar o tempo inteiro em ter-te apenas por gostar. Deixa-me confessar? Tão lindo te ver dormir...E esperar pelo teu sorrir para ir-me lá, um sorrir que conheço há sempre e só agora posso tocar. Entendes?

Desfaço-me em bobices porque também renasço eu. Já não és A., és nome outro, aliás nome algum, não vou deixar que. Nada de conceitos. Quando me chamares, saberei. Será que a recíproca? Preciso ver-te. E te vi todos os dias de tão longe, agora preciso outro abraço apertado sem ser repetido, tenho um ciúme bobo que se mostra em tudo, reparaste?

Sigo-te com os olhos a todo recanto, quase chego a pedir tanto que me vejas, mas, quando vês, temo. E por que temo? Será em meus olhos digo tudo. Tudo?
Mudei de cidade e não mudei de mim. – Foi? Vivo de paixões e que absurda essa. Sonhei ou foi verdade? Em momento algum fui pedir passado e agora me vem o novo, vem de novo e tenho medo de doer.

Mas vou viver, posso anotar.

Saudades tuas, A... Conta-me um pouco? De novo sobre teus casos, cores e livros. Mostra-me os fatos e ri de meu riso, mas seja comigo, se posso pedir.
Acredito, acredito, acredito.

Recebeu mesmo aquela carta?


Sorriso,
S.

7.3.07

entre umas doidas e outras

"ô marília
acho que as drogas que tu tem tomado
são verbais"




ps: por mais leitura 15h no dragão.

13.2.07

Breve carta de um até breve, numa estação;

“A.,

não quero que me perdoes pelo erro não cometi, não quero que me esperes na calçada de um domingo, não quero que sonhes comigo. Não quero nada disso. Nem perfeição nem negligência. Quero uma coisa somente.
Estejas bem e não-tão diferente, na mesma casa, talvez mesmo jardim. Mas, sendo de mudar, desejo bons caminhos. Que a janela continue dando pras estrelas mais distantes, que a música vezenquando se alimente. Que as aulas estejam sendo boas; adoráveis os livros, singulares as pessoas, em ordem os discos. Ou desordem, se quiseres.
Vai bem a família? Lembro-me do verão passado, de Cecília, de Drummond. Lembro-me de filmes antigos, mas sobretudo os vindouros, que têm gosto de morangos (morangos mofados?). lembro de um teu sorriso, aquele que na alma me gravaste e, decerto, não te lembras nem desejas. Compreendo – mas lembro.
Sorrio ao pensar que essa carta é um silêncio enrustido. E o que não houvera sido, “desde tempos imemoriais”? De silêncio em silêncio vive o homem, ainda que eu discorde. Hoje desfaço a coerência, sem disfarces nem ausência: tento. Percebes?
Olha, agora me vem à cabeça aquela cena, daquele banco, daquele dia, ah, daquele dia. Talvez nem lembres, aliás, bem certo, mas não tem importância, já disse não ser o que quero. Tens visto ainda os meninos, ido muito ao nosso lugar? Há tempos não vou mais. Não por não sentir falta, mais por falta de tempo.
E se o tempo? nem sabes... Sonhei contigo e até, muitas vezes, escrevi cartas, mas o mar era bravio: não chegaria.
Escuta, escrevo estas linhas em um banco de estação, um copo na mão – nem sei o que bebo, parto bem breve. Compromissos, profissão, pelo sim e pelo não, aceitei uma proposta. Vou como costumo ir, bem sabes, com a blusa aberta e uma rosa em botão, que esperar me estorva.
Falar em esperar, esse trem que não chega. Mas por certo não é nada, só minha velha mania de chegar cedo. Pois bem, não sei o que te dizer no momento mesmo em que digo, um garoto me sorri. Pede um isqueiro pro pai, uma pena, eu não fumo. O menino se vira e vai embora. Tão estranho, uma tristeza pesada me bateu com o bater daquela porta... Uma lágrima, no agora. Ando assim mesmo tão frágil?
Talvez tenha visto a mim no menino. Ou, o que é mais provável, visto a ti. O sorriso ou o sentir, nem sei. Essa espera me consome, preciso não esperar. Às vezes tenho a impressão de que os minutos matar-me-ão mais cedo que a bebida – grande conclusão, vês, já que não bebo. Decerto sempre supus minha ebriedade, ebriedade da vida que a mim me basta (frase não minha, de Pessoa, diga-se de passagem). E nunca basta.
E me disseram, olha se tem cabimento, que as nuvens não são feitas de algodão (!). Sim, começo a perder o lugar de meu eu, que será que digo sem me saber.
Ah, não te incomodes nem te machuques, pelo amor dos deuses nossos, jamais meu intento. Queria, pudera, diminuir o silêncio. Silêncio aqui dentro, silêncio dessas vozes nas ruas, silêncio nosso de cada dia. Quis, será que entendes, dizer adeus já que abraçar-te não podia.
E mal imaginas o aperto do meu peito ao proferir palavra adeus. Paro pra respirar e olhar o céu, é dia claro, sabes? De um azul até invejável aos melhores vestidos, e aqui sorrio, por que será.
As pessoas andam rápido, fogem de si mesmas? Parece que vão perder o trem (um espasmo, um gargalhar, que humor angustiado esse meu: humor de amor que se perdeu). Pois é como te disse, parece que vão perder o trem, e perdão pela bobagem. É minha maneira de continuar. Esperando?
Começar a pensar que errei a hora.
Olha, andorinhas. Estorninhos e pombos, quantos deles e eu nem notava! Seria bom ter algo a lhes dar. Não tenho, realmente vou de viagem e só levo o chapéu, bagagens me deprimem. Talvez penses no disparate disso tudo, se lá vou morar, mas, ora, já me arranjo, não foi sempre assim?
Vejo rostos conhecidos que nunca conheci – nem irei conhecer. Ah, sim, minto! Trouxe um livro, poemas. Não, não escolhi, foi o primeiro, o que vi sobre a cama. E adivinha. Era Hilda, que profético. Lembras dessa palavra? Tão vivaz a infância. Prefiro crer que eu só continuo. Jamais em pureza, mas em tentar.
Sim, e se alguma vez me magoaste, ah, sem hipocrisias, te perdôo. Não por bondade, mas e mais por precisar. Porque amo. Porque só assim posso. Continuar? Se às vezes te odiei por quase mais que segundos, tanto mais te amei ao amanhecer. Não levo mágoa, levo dor. Não são iguais, digo-te, e precisamente sei que sabes, mas quis repeti-lo. De ti, levo as tardes. E as estrelas e as cartas. Ah, pois é, outro esquecimento, mas dessa vez não uma mentira, esqueci mesmo:
As tuas cartas. Ficaram, lembro, na mesa da cozinha, quando eu relia ao tomar café. Não pude o café, não pude as cartas; saí e esqueci-me de voltar.
Não, A., não me esqueci de coisa alguma. E, se o tiver feito, foi a mim: esqueci-me de mim ao acordar de um grande sonho. Outra coisa – o que tinha de entregar-te dei ao nosso amigo. Se as quiseres, ele há de dar-te.
Por favor, não penses nunca que eu não quis. Ou, muito menos, que te quero mal. Jamais houve, e aqui te juro, quem eu quisesse mais. Tampouco pra ser meu, o bastante pra cuidar. Ontem assisti a uma peça e quase te chamei. Mas, depois de tanto tempo, talvez eu tenha aprendido a respeitar a tua escolha.
E, ora, ora, se não é o meu trem. Parto em quinze minutos. Parto, já tendo me partido. Quase que te digo, mas achei por bem dizê-lo agora.
Cuida-te bem, desejo o de melhor. Para ti e para todos que tu queres. Teus caminhos e escolhas: viva, muito. Não chores (e não creia que aqui a prepotência de crer chorares tu por ir-me embora). Por mim e por ti, não chores. Ainda que às vezes em ti doa, ainda que quase nada eu seja, hás de ter-me sempre ao lado. Se quisesses, num chamado...
Agora vou.
Não tive a coragem de tentar mais uma vez. Talvez porque não houvesse o mais. Minto, esse ainda é um tentar.
Um dia dei-te a alma em um segredo. Hoje dou-te o segredo em minha alma. Deixo-te essa carta embaixo desse banco; o mar era bravio – não chegaria.

Até sempre,
S. ”

1.2.07

Big Field.

É não ter medo. Você entende não ter medo? Ouse a primeira nota, criar harmonia própria, quebrar qualquer seja a corda, e ainda assim o som ser bonito. E sim, o belo existe. Onde, onde, onde é que se esconde o belo, que ninguém consegue dizer. Ou dizem, sem saber.
E é aí a música. Aí o riso, o sorriso, a razão.



Começa assim:

Sol sustenido
(a uma fada =)


ps: ouçam jerry espíndola (falo sério)

22.1.07

5 anos e 4 meses #)

(sem pretensões literárias)


E foi assim:

ao calar dos primeiros minutos, em verdade dizendo tudo que se podia dizer, foi chegar em casa pra perceber que a sua casa seria onde fosse aquele sorriso, aquele sorriso que esperara tanto tempo. chamassem epifania, ela chamaria ainda assim outro nome... chamaria sofia. chamaria aquele início que já nem era um começo, esse começo que já nem é um início. não tem verso, não tem filme, não tem personagem que entenda ou Máquina existente que suponha o amor inteiro que ela é. ou somos. ou seremos. já sendo.

minha irmã.

não tenho conseguido escrever por vários motivos. um é o tempo. dois é que pela primeira vez na vida realmente fogem TODAS as palavras, eu só sei sentir. já diria cazuza, "eu só sei insistir", eu nem isso. só sei sentir.
e, quer saber, se tristeza não tem fim (e o poeta estiver certo, porque tenho sérias dúvidas), felicidade tem menos ainda~


ps: menos ainda. #)

12.1.07

O vestido vermelho [parte 2]

(só um trecho)
.
Capítulo 2.

Ainda menina pouca, talvez uns meses de vida, tinha lá percebido o mundo que nem o mundo a percebia. Um grito, um início, um turbilhão de sentires, e misturados aos cheiros as superfícies, foi assim toda a meninice da moça que aqui contamos.
Tão logo nascia a menina, a mãe tinha ido embora. O pai dizia que morta, a menina pensava que nada, que qualquer dia voltava, alguma coisa do gênero, que o pai futuramente lhe ensinaria a ler e era nos livros que ela veria o que queria que houvesse. O problema era que o havido só inventava de ser quando queria, e o querer da menina (ainda quando já moça) jamais batia com o querer do havido, com os livros de estória, ou com as memórias que ela tinha de si mesma noutra vida: a vida que queria ter.
Pois bem: morta ou desaparecida, da mãe ficava apenas uma saudade, causo que virá em seu devido tempo, quando mais tarde crescer - e contemos no adiante. Cresceu sem mãe a menina, mas quando contava os seus meses, ainda uns três ou quatro, não pensava tão profundamente, que o mais que fazia era grito e choro por algum algo. Chorava de fome, chorava de sede, chorava por colo, e o pai sempre ali. Lembrava daquele tempo como um bloco de memórias não esparsas, até muito pelo contrário, memórias bem sólidas, as sensações nítidas, como se ela inteira fosse um imenso ser uno e indivisível. E não era? Era, era. Mas é que com o passar dos anos foi percebendo que o seu sentir tinha várias qualidades, várias áreas, tantas formas de perceber, que apesar de ser ela inteira uma única, era como se fosse muitas. Da infância primeira lhe ficara essa sensação bem justamente, de ser o contrário do que era agora, porque sentia as coisas todas como se fossem todas na mesma hora.

~

8.1.07

Agora

(texto de antes)

.

Andando pela casa como quem perdeu o rumo. Mas se até ontem à noite podia jurar que tinha achado. E andando pela casa com uma garrafa na mão. De água, água o bastante pra afogar o que tivesse de sujo. e pensando que sujas são as mentiras, sujo é ter de mentir. E água o bastante pra, além de afogar, matar a sede inteira.

E o que era que faltava, qual era a última peça, que palavra saíra errada, que verso saiu do ponto, até a comida naquele lugar era outra. E o lugar não era uma cidade, não era um bar, não era qualquer construção imaginada, porque aquele lugar em que estava, estaria e queria tanto estar não tinha sido feito por mão humana alguma.

No entanto, ah meu juizinho, a mão alcança. E andando pela casa como quem quer muito chegar. E sempre encontra paredes, alguém chamando, a cabeça rodando, o sentir todo sendo agora e uma certeza ridícula de que é verdade. Pode bem não ser. E sabe: andando por tudo, ela sabe. Ela sabe que pra ela é.

A casa nunca termina - a água é que sim. E torna a encher os copos, porque nenhum aquário nunca é maior do que o mar. porque tenho medo quando chove, mas eu sei nadar. Porque eu acredito. porque estou olhando há anos e não acho outra resposta.

Não é bem só mudar de música. Também não é só ir embora. Ou seria? Se fosse, aprenderia. Mas enquanto não toma certeza, toma muita água e fica quieta.

Quieta? Andando muito pela casa.

E quando a casa acabar, vai tomar o mundo. Tomar com os pés que lhe deram, mas repetindo, todos os dias, aquele recém-poema

placa inútil e amarela:

“não pise na grama”

amarela

pela ausência de girassóis

inútil,

porque não tenho os pés no chão” (Fabio Rocha)

e se eu não achar palavra, inventarei uma nova. E se eu não achar mais nada, aí então é que não sei.

Qualquer coisa eu ando pela casa.

~

6.1.07

Fe-li-ci-da-de.

música: Todas elas juntas num só ser.


E o que eu vejo é a tua voz. Os teus olhos pequenos, escuros, escusados de toda a verdade que poderia haver em um minuto. E todos os minutos minuciosamente percebidos na ponta dos dedos e nas arestas dos sorrisos, arestas que vou aparar com todo cuidado, pegando tuas próprias mãos e dizendo apare. Espere, ainda é cedo, não vá ainda, vem comigo.
O vestido vermelho da saudade que em ti cairia tão bem. Nas tuas mãos pequenas as grandes verdades dos últimos tempos, revelando futuro presente e passado – nessa e em outras ordens - , nos teus olhos escuros os segredos inteiros do mundo.
Conta-me, aos domingos, qual a música vais querer ouvir. E quando eu não souber cantar, vou pedir que me cantes, que quando cantares, tudo há de vir outra e outra e outra vez. então saberei de tudo.
E quem quereria saber de tudo, a teu lado?
Deixa eu te dizer, amor inteiro, que não fui eu que escrevi esse vestido, foi ele que me escreveu. Desenhou-me cada traço em teus espaços, teus silêncios e destino. Um desatino só, essa voz que me perturba e me acalma, tão assim na mesma hora que nem sei dizer o quê.
O que é que em ti me mata, o que é que em ti me eleva. Toda a poesia que podia haver num só segundo,
O samba completamente revelado,
Entre uma e outra verdade repetida

Tão repleta em ti, confesso, a minha vida.

~

Ana Cristina César, a um samba.

DUAS ANTIGAS

I

Vamos fazer uma coisa:
escreva cartas doces e azedas
Abre a boca, deusa
Aquela solenidade destransando leve
Linhas cruzando: as mulheres gostam
de provocação
Saboreando o privilégio
seu livro solta as folhas
Aí então ela percebeu que seu olho corria
veloz pelo museu e só parava em três,
desprezando como uma ignorante os outros
grandes. E ficou feliz e muito certa com a
volúpia da sua ignorância. Só e sempre procura
essas frases soltas no seu livro que conta história
que não pode ser contada.
Só tem caprichos
É mais e mais diária–
e não se perde no meio de tanta e tamanha
companhia. "



em A teus pés, Ana C. César.

~

4.1.07

O vestido vermelho.

música: Sidney Bechet.

[diga-se: conto escrito há bem vários tempos. aliás quando foi mesmo? xp preciso continuar.
e paciência, haja paciência. =] é pq é grande =x se duvidar é uma novela, mas sei lá também.
nessa vida tudo é uma novela, ó. com o perdão da piadinha~


"Capítulo 1.


Inscrição em xilogravura, cor de céu de estanho, na porta da vigésima segunda casa:
“portas e janelas ficam sempre abertas: pra sorte entrar”

Pra quem olhasse de fora, talvez a vigésima segunda casa não trouxesse maior surpresa além de ser mesmo a vigésima segunda casa e conter uma inscrição acima da porta, qualidade essa até então inexistente às outras. Qualquer um que passasse quase sempre não notava sequer o que dizia, quanto mais o que continha a casa. Tempo é dinheiro, sempre diziam, e dinheiro seria o quê?, o engraçado é saber tanto e não saber mais que dizer.
E dentro da vigésima segunda casa, pra quem olhasse, havia uma moça. Não era princesa, não era dama, sequer donzela, não era um conjunto de sedutoras cores, não era o sonho dos rapazes, não era o sonho de si mesma que fazia aos doze anos, já tão longínquos: porque aquela moça sonhava dum jeito outro, sonhava com a ponta dos dedos.
Praquela moça, que se preferia dizer menina ainda - mais pelo desconforto de ter de mudar de palavra -, praquela moça, no entanto, mesmo as portas e janelas sempre abertas, a sorte só entrava ocasionalmente. E, curiosamente, pra fechar alguma das outras janelas, porque estava frio. No mais das vezes quem sem cerimônia se chegava era outra dona com s, tão altiva quanto a outra, mas não das mesmas cores: a saudade. Uma visita quase diária, ali pela porta da frente. Se a moça não estranhava as visitas? Ela preferia tê-las. Porque era na ponta dos dedos que entendia o mundo, não que fosse cega ou surda, mas era o toque o sentido aguçado. Poder-se-ia dizer que quase não sabia nada que escapasse aos dedos, e tocava, tocava sim e tocava inteiras aquelas visitas. A sorte, quando vinha; e a saudade, todos os dias.
Porque sentia muito, não de sentir-doer, mas sentia muito, devotava pouco tempo da vida às divagações, e o sentir preenchia o tempo, as lacunas, as ausências. E re-conhecia os lugares todos de suas memórias, seus espaços da casa, as janelas, as pessoas do mundo lá fora: só não podia sair. E não podia sair porque há muito seu pai, tendo percebido dela que era com os dedos que via o mundo, explicou-lhe que o mundo muito se ofenderia se disso tomasse tento. Apesar de não entender bem o motivo, pouco tempo depois o pai morria, não ficou tanto ainda pra perguntar, nem houve tempo de responder; tomou aquilo como verdade de catecismo e pronto e foi-se.
Aliás, ficou-se. Não saía, não.
E antes de sentir o gosto das comidas, era a pele das frutas e a rugosidade das sementes o que sentia, era aí seu prazer primeiro ao preparar refeições. Todos os dias isso, por mais que tudo aquilo já soubesse pelo hábito, por mais que inventasse sempre, pra não morrer de tédio. E não morria. Acordava sentindo ainda o macio dos lençóis, o sol no rosto, os próprios dedos no rosto, depois as mãos nos livros, e aí as mãos em tudo.
Sentia às vezes a presença insólita da solidão, que se fazia vir por um frio na espinha, subindo lá do mindinho do pé. Sabia disso só porque a solidão nunca se mostrava: mostrar-se era ser já companhia e negar-se a si mesma, e não, a solidão era sagaz. Vinha seguida do frio e se escondia sempre em lugares diversos – a moça nunca saberia. Apenas pressentir, deduzir, saber: vê-la, nunca. Permanecia incógnita a cor do vestido dessa outra.
Ah, sim, as cores dos vestidos, isso a moça bem notava. O da sorte era azul claro, e ela ria quando lia nos livros ser verde, “por referência à esperança ou ao trevo, papai?”, ela perguntava, mas ele não podia mais dizer. Era, o vestido da sorte era azul-claro. O da solidão a moça nem sabia nem queria saber, era a única dor que ela tinha, vezenquando.
A dor que às vezes tinha de se saber única, de não poder sair pro mundo e de que, mesmo que saísse, continuasse sendo única (e isso quer dizer sem mais ninguém) e sem poder sair pro mundo. Tudo isso talvez num estado de semi-consciência, e era então que tocava a si mesma. Conhecia seus segredos não melhor do que os segredos de todo o resto que tocava, mas era em si que mais sentia, por tocar e ser tocada, por se saber interna música quando se perdia aos próprios dedos. Jamais soube que pudesse ser errado o sorriso de presença dela mesma ou ainda o sorriso de prazer que coroava. Era esse o seu remédio, a sua janela aberta, pra quando vinha a solidão com seu insólito invisível vestido.
algum tempo ignorava, ou tentava ao menos, ignorar a solidão, e isso se dava talvez porque ela não vinha sempre mesmo. Quem vinha era a saudade. E qual a cor do vestido da saudade era a dúvida que agora a perturbava: não lembrava. Mesmo que viesse todos os dias, mesmo que visse e tocasse, assim que a saudade ia embora... Ela esquecia. De início pensou ser uma brincadeira triste da saudade, depois se convenceu de que a saudade vinha mesmo nua em pêlo, não tinha nada errado, afinal só ela via.
Convenceu-se de que via a saudade em estado nascente, todos os dias. Uma mulher alta e esbelta, entrando pela porta de sua casa, sem vestido, sem reticências. Então via assim a saudade, mesmo que não fosse, e aliás muito lhe agradava que justo aquela, a mais bonita, não trouxesse vestido nenhum. O único problema foi não ter mais tido coragem de tocá-la, depois desse alto convencimento. E, ironia ou não, tinha saudade de tocar a saudade.
Passou então algum tempo sem que viesse ninguém. Talvez viesse só a solidão, mas ela não sabia mais, permanecia absorta na idéia do vestido da saudade, pensando se ousaria fazer um. E por que afinal ela não tinha vindo mais era um segredo, e ninguém lhe revelaria. Talvez se tivesse sentido ofendida, por terem perdido a intimidade? Era uma possibilidade, mas ela não havia tido culpa, a súbita percepção daquela nudez lhe intimidara por completo.
E foi quando pensou que se fizesse um vestido pra saudade e não tivesse mais medo de tocá-la, quem sabe ela voltasse. Porque tinha um medo enorme de que não voltasse mais, era sua amiga mais freqüente, era a única que sabia seu nome, às outras não havia diferença.
Permanecia naquela casa caída, mas tão completamente sua, e permanecia nas dúvidas, se fazia ou não o vestido, e de quantas presenças a essa altura sua sala ia cheia. Tocava o silêncio tateando, primeiro o vento, depois as paredes, e não ia nada escuro, era só porque não escusava de usar os dedos mesmo quando era claro.
Pensava, “claro...”, claro que não haveria ninguém ali. A sorte era ocasional, a saudade tinha ido embora, e a solidão, que não se deixava jamais sentir, permanecia. E permaneceria, por quanto tempo ainda durasse a dúvida.
E duraria.

"






eu disse que era grande. mas é só o começo. adoro vestido vermelho, na música. só na música =}

3.1.07

Da leveza.

música: Disritmia.



Não haverá um equívoco em tudo isso?
O que será em verdade transparência
Se a matéria que vê, é opacidade?

Nesta manhã sou e não sou minha paisagem
Terra e claridade se confundem
E o que me vê
Não sabe de si mesmo a sua imagem.

E me sabendo quilha castigada de partidas
Não quis meu canto em leveza e brando
Mas para o vosso ouvido o verso breve
Persistirá cantando.
Leve, é o que diz a boca diminuta e douta.
(cantar e leveza, agora me diz se ela não me traduz)

Serão leves as límpidas paredes
Onde descansareis vosso caminho?
Terra, tua leveza em minha mão.
Um aroma te suspende e vens a mim
Numas manhãs à procura de águas.
E ainda revestida de vaidades, te sei.
Eu mesma, sendo argila escolhida
Revesti de sombra a minha verdade.
(bem verdade)


[Passeio, da Hilda]

Ao jazz.

.

Tem um cara cujo nome é Sidney Bechet. E o que esse homem faz com o jazz não está escrito: está tocado. Ele e Charlie Parker, aí lá vem as divas cantando, a Ella, a Bessie, a Sarah, todas elas. E até o Ray Charles. Mas eu não tava falando era do Sidney Bechet? =x

Olha, eu vou falar da resposta do universo. Tem algumas, aliás. Tem a Sofia, tem a risada do Alan, e tem essa música que é “blue horizon”, que ta no mesmo patamar de body and soul na minha vida.

Body and soul, repita comigo.

E Madeleine cante aqui: dan-ce-me-to-the-end-of-love.

Todos eles e um depois do outro, muito jazz na minha vida. e rezemos de novo:

Eu consisto, eu consisto, amém.

Um sorriso a Sidney Bechet =)

1.1.07

dizia a Hilda, digo eu

costuma doer quando não parece.

Hilda Hilst

. a ficção tá no livro. o livro que eu molhei na chuva. o livro que arrancou as páginas:
e não faz sentido - só não faz.
aquela música repetindo quando quer e o quando quer é muito: Nada vai mudar isso.
[mudou: eu sou neguinha]

falo com voz da Hilda:


Amavisse

Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro

Um arco-íris de ar em águas profundas.

Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.

Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada."

adoro sempre esse poema, pra além de mim. pra além de agora, mesmo quando o agora é nunca.

e nunca vá pra uma serra pensando que não vai ter muito sol, muito amarelo e se pensando forte.
mas cante sempre hilda, cante cante bem muito.

eu pediria um recital, desse poema só e de vários outros, mas deixa que eu leio mesmo.
E te respiro inteiro.


~