25.10.06

Quem não (ou Da desordem)

Procurava a música mais certa ao trabalho. Sim, porque o trabalho era árduo. Nada de ordenar a casa, limpar o pó, jogar os papéis, não. Hoje era tirar os sapatos, tocar pra frente a poeira, abrir as gavetas, os copos no chão. Um homem repleto ele era. Tão completo, que não precisava completar-se, pôr-se em ordem, provaria.
Ao desarrumar os lençóis, desalinhar o sofá, tirar o violão do armário, ele não pensava. Mas o narrador assiste e, sem querer narrar, auxilia nos trabalhos: bagunça-lhe as vírgulas e ele nem sabe - já deixou de pontuar-se.
"Minha grande grande grande obsessão", terá pensado, terá chorado, terá sentido, terá, talvez, dito ao mundo todo? O apartamento não é grande, em pouco tempo percorrerá todo o espaço e até o não, virando-se sempre pra descobrir o que falta.
Deu voltas inteiras, abriu a garrafa, destorceu as torneiras; e, bem logo, vazia a garrafa e cheio d´água em casa. Sentou-se ao chão, meditando não calmamente sobre cada uma das possibilidades. Quanto às cartas, sim!, seria melhor colocá-las à mesa demonstrando que sequer precisara escondê-las pra esquecer ou pôr a caixa antiga perto do lixo, simbolizando o lixo imenso que era agora? Impacientou-se, queria lá saber de cartas, morressem sozinhas. E levantou pra continuar.
Os retratos, deixou intactos só os cheios de poeira - melhor assim. Do resto, já bêbado, nem lembra o que fez (amanhã, sabemos: arrependimento). Deu-lhe, de repente, uma imensa vontade de rir, mas de que rir?
Morreu de raiva por não ter comprado um apartamento maior e, como o tempo não passasse, resolveu-se a limpar tudo e depois recomeçar melhor ainda. E fez. Um a um, cada espaço foi re-escrito, limpo e sujo, obstinação doentia, esqueceu-se de comer e de dormir.
Não percebeu que não mudara os discos, repetira o mesmo infinitas vezes; tantas, que o vizinho tinha vindo reclamar. A febre que lhe tinha, no entanto, não deixou que ele ouvisse a campainha, um grande erro. E se fosse ela? Por certo não viria duas vezes.
Ele, o autômato, acendeu e apagou luzes, cantou seus versos preferidos e já nem lembrava mesmo o motivo daquilo tudo. É que tinha tanto, tanto tempo, e por que diabo a casa toda bagunçada? A Norma esqueceu de vir de novo? E depois reclama aumento. Que loucura, que sono e que vontade de,
Toca a campainha. Ele pensa três ou quatro vezes, afinal quem seria aquela hora? Volta a súbita vontade de rir; nem entende, mas abre.
Um desespero seco e ri aquilo tudo que queria: era ela. E agora veria, na desordem dele inteiro, que não sentia, não sentia falta alguma.

5 comentários:

Marília Passos disse...

esse eu ainda vou mexer alguma coisa, acho, mas por algum motivo ele cai no meu pensar todos os dias.

Alan Santiago disse...

é o desarrumado nosso de cada dia, a solidão, os discos que a gente esquece na vitrola, as cartas que amontoamos (ou que não entregamos, sabe Deus porquê), enfim, um texto lindo!

P.S: a descrição metalingüística é muito própria, mas - no segundo parágrafo - eu achei que quebrou o ritmo. você concorda?

bruno reis disse...

uhmmm :)

muito bom o texto, marília. uma cadência bem particular conto-crônica-poeminha. a meticulosa displicência do dia-a-dia dele ficou sensacional! e o final fechou muito bem a história.

agora concordo com o alan, eu gostei da interferência do narrador, só achei que ficou estranho porque ela não se prolonga pelo texto, ficou algo mais restrito àquele ponto.

acho que nesse trecho: '''e, bem logo, vazia a garrafa e cheio d´água em casa'' o ''e'' é desnecessário, gera uma certa confusão.

Ah, e achei que ficou confuso também a hora que ele fala que o vizinho reclamou da música, e logo em seguida a campainha toca, dá impressão de que é o vizinho. Ao mesmo tempo dá um efeito legal de perda de noção de tempo, mas acho que dá pra deixar mais claro sem perder isso.

Lara disse...

uma bagunça gostosa e não acidental: não foi por desleixo que ele não arrumara a casa. E não foi sem querer que dona Lila bagunçou idéias e pontuações.
Acho que você devia,se medo de ser feliz, bagunçar também a estrutura do texto: o reflexo-caos de um personagem.

Eu me pergunto agora se ela ao ver abagunça não pensaria justamente o contrario: "Céus, sem mim ele esquece de todo o resto! Olha quantos pratos sujos!"


Belo texto, Dona moça. :**

Ary Salgueiro disse...

Muito legal , Marília, depois do final o texto todo é lido, pelo menos pra mim, de uma forma diferente. Ele todo é muito bom.

A parte metalinguística eu gostei, não atrapalha o texto, mas se retirada não muda muito, eu acho...