16.11.06

Carta nº tantos mil e outros zilhões;

Você viu o céu de ontem? Pergunto-me se foi só da minha janela. A minha janela, ainda assim, era grande o suficiente pra várias pessoas, mas não era festa. Ainda ontem eu lembrei da carta passada, tem tanto tempo, e não importa. Vejo você na beira do rio, como em quase todos os dias, que era onde você ia quando acabava a aula. Consertou a bicicleta? Quando fizermos 15, talvez não haja mais tempo. Ou vamos sempre ter?
Conheci uma pessoa incrível. E não vejo muito problema que tenha uns vinte ou trinta anos mais que eu, se costumo passar lá e ouvir aquele piano. Ela me emprestou uns livros, sabe? Mas não sei se terei tempo de ler. Descobri que gosto muito de piano. Você sempre gostou foi de gaita, não era? Tomara que você ainda toque. Por exemplo, numa noite como a de ontem, teria sido muito, mas muito bonito... Mesmo. E, sabe? Mamãe perguntou por você. Se está bem. Se tem dito algo, ou sei lá. Porque as suas roupas permanecem no armário, os seus brinquedos na estante, e você ainda aqui.
Nas férias você vem? A neve vai cair, quando você vier. Eu juro que não te bato, nem fico provocando ou dizendo as idiotices que sempre... dizia. A mamãe disse que eu cresci. Uns dez centímetros, talvez. Abusei dos vestidos azuis e vermelhos, quem diria. Mas ainda gosto de tranças, embora os meninos me digam criança, que me importa. Sinto sua falta sobretudo quando me perguntam de você, o que não quer dizer que não te lembre sempre, enfim, é só que o tempo às vezes muda de cor.
E fica cinza, sabe, o tempo.
A vida não é triste, não. Eu só queria era ter uma máquina, escrever datilografando, tão feia a minha letra. Sabe aquela mecha de cabelo, sua antiga, do tempo da vovó? Mamãe guarda. Teu cabelo louro e pouco, mas ela não chora mais. Acho que já entendeu que você cresceu também, e talvez mais que meus dez centímetros.
O mundo aí grita muito? A cidade crescendo é meio assustador. Os terrenos baldios que tinha aqui em volta, não tem mais, só prédios bem grandes, quase todos cinza, e pior quando têm aqueles azulejos ridículos, e a gente nem mora perto do mar. Ontem eu ganhei um troféu, não entendi bem por quê, mas fiquei feliz. Quero dizer, vim correndo mostrar em casa, mas acho que eles andam premiando qualquer coisa na minha sala, pra ver se ninguém põe mais pó de giz nos ventiladores. E não, dessa vez eu juro que não fui eu, mas foi mais engraçado que o de costume, você devia ter visto.
Acho que é primavera, e ontem eu quis mais música. O que será que você quer que eu conte, não sei. As professoras dizem que vou melhorando, mas também não sei até que ponto são sinceras, é difícil confiar em alguém quando muito maior ou menor que você. Aliás, em todo mundo. Eu confiava em você, acho, mesmo quando brigávamos.
Tem jazz por aí? Achei tão engraçado. Quando fui conhecer (nos últimos meses), me disseram que já era superado, chegou o rock. E te pergunto por que não pode ser os dois. Eu ouço os dois. E tomara que sua cidade não seja pequena o bastante pra não terem chegado ainda, ambos. Tão divertido, toda a música devia ser assim. Ah, estou cansando, você já não tem muita coisa pra ler?
Faça o favor de responder, mamãe pede notícias e não sei até quando terei vontade de mentir. Entendeu? Você pode até ser mais velho, mas quem ainda cuidando de tudo por aqui, acho mesmo, sou eu. Vamos, não seja tão ruim.
Pegue a gaita e toque outra vez, apareça, sim? Não nos esqueça, lembre todos os dias.

Sempre suas,
mamãe e eu.

Um comentário:

Raiça Bomfim disse...

Ah... Tão bom de ler. Daquela beleza triste como tantas. Ah...
Gostei um monte!