30.11.06

O piano e a flauta.

E, posto que era o último segredo, não sabia mais em que parte da casa escondê-lo.
Tinha usado a sala, o quarto, o banheiro - até a cozinha, cada menor canto ia ocupado, seguido de duas mãos de tinta, a sua e a sua outra.
As gavetas, armários, malas e caixas, tudo indevidamente empacotado, quase prestes a viajar. Só não sabia dizer o tamanho da viagem, mas o que devia ficar, estava; e o que devia ir, que fosse.
O que estava, estava em cada canto da casa, ela sabia ao toque do piano, deslizar de dedos, todos os dias à mesma hora. Tocava pra acompanhar o vizinho de cima, do qual sequer o nome adivinhava, mas era àquela mesma hora que estudava – supunha que ele estava a estudar, dados alguns deslizes que cometia. E adorava até esses deslizes.
O que estava, ela já nem sabia o tanto, mas guardava cuidadosa e indevidamente em cada pequeno seu esconderijo: devia evitar os grandes, que chamavam muita atenção. E porque não sabia guardar segredos por muito tempo, tinha que correr contra ele.
Contra o tempo, os rios e o vizinho de cima. Ele a desafiava? Às vezes parecia que sim. Mas ela tinha um piano e ele só tinha uma flauta, era uma flauta, não era? Uma transversa, por certo era. E ela seguia em todas escalas, um delírio e um deslize, acompanhava-lhe os erros e evitava todos os dias ver-lhe o rosto: porque o último segredo era o mais difícil de esconder.


Até que um dia ficou doida. Doidinha de pedra, não sabia mais tocar o piano, nem entender os deslizes, nem esconder os segredos. Desaprendeu a cor das tintas, perdeu a ordem dos cômodos, o incômodo de não saber já nem insistia.
E via o vizinho todos os dias.
Tinha esquecido do som, de onde vinha, quem era aquele, e qual era mesmo o último segredo?


E outro dia, ainda uma vez um intervalo bem demorado, um tanto quanto exasperado, ela ouvindo um som estranho, lembrou do tempo em que guardava.
Foi quando não entendeu mais nada e, assim num espasmo, perguntou ao espelho, se era ela que tinha o piano, se estava mesmo ganhando, porque foi que foi se perder.


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12 comentários:

Anônimo disse...

ai moça. esse texto e o penúltimo estão tão lindos! o de ontem ficou tão simples e forte!
e esse... bom, eu achei ótimo. talvez eu conseguisse entendê-lo melhor ao saber no que exatamente você pensava ao escrevê-lo, mas mesmo assim. achei-o de uma criatividade tamanha. :}

Anônimo disse...

"meirmão,
a clarice adverte:
matem suas avós."

diretamente daquele bloco de notas cheio de quases.

Anônimo disse...

ahh, que bom. então eu entendi exatamente o que deveria ser entendido. ^^

a letra daquela música até lembra mesmo cordel, só que a música em si acho totalmente diferente. lá no post tem o link pra baixar o mp3 da música, só clicar no nome da música. ;D

e, sim, onde que vai ser o por mais leitura? O:

Anônimo disse...

Nossa!
Vc escreve bem pra caramba mocinha!
Parabéns!
Volte sempre que quizer lá no meu blog ta.
Obrigada pela visita.


Bjos

Lia disse...

adorei o texto.
mesmo.
e tu é de fortaleza, eu vi aqui;
então, os melhores textos, eles se encaixam em várias mentes em diferentes momentos.
esse teu faz isso.
gostei mesmo.
e sim, aquele do meu blog é meu.
todos são, menos, claro, os que eu coloco referência.
e eu tenho um carinho especial pelo mário.
mas o bandeira realmente é muito bom.

mas eu gosto mesmo é do pessoa.
ídolo-mor.
hehehe
;*

bruno reis disse...

uma história delicada e bonita :)

mas deixa eu dar pitaco de novo. gotei muito, especialmente da primeira parte, acho que a segunda precisa ser melhor desenvolvida... a passagem de uma coisa pra outra foi muito brusca, da sanidade à loucura. talvez fosse melhor, por exemplo, descrever o processo dessa loucura do que só dizer que ela ficou. há uma mudança muito rápida de ritmo, acho q seria preciso uma transição mais suave, mesmo que a reviravolta acontecesse rápido.

Anônimo disse...

Seu texto está uma pérola. Parabéns.

Elenita Rodrigues disse...

Te coloquei nos favoritos... agora fica mais fácil voltar =)

Beijão pra vc.

Raiça Bomfim disse...

Tentando desvendar o que ao não dizer seu texto diz, fui-me enovelando nas linhas e deslizei em suas palavras "... como se piano fosse flauta...".

Raiça Bomfim disse...

Sim, sim, sim. E agora memso estou cá! girassol_rbc@hotmail.com (o girassol é resquício dos tempos remoos de capoeira rs)

Raiça Bomfim disse...

Só um p.s.: essa letras antes do "@" é um "c". É porque achei que ficou meio duvidoso ali. ;*

Marília Passos disse...

esses comentarios tao felizes, hein =D

\o/