14.12.06

Retrato de uma retratação

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Por que eu fiz por que fizeste por que fazem e fazemos e fazeis, ele fez – quem foi que disse ninguém soube, mas ficou se repetindo: por que eu fiz por que fizeste e fizemos?
Ele entrou no centro da arquibancada, mil gentes em volta, todo mundo a nada dizer, esperar que ele começasse. Talvez que se arrependesse, que dissesse Eu não sabia, não queria, vou voltar. Que chorasse, que doesse, que repisasse, se humilhasse, em vão caísse, qualquer coisa que acabasse com a vontade do mundo, aquele mundo, de dizer-lhe infame e vil. Criminoso, ignóbil, traidor. E por que mesmo havia sido?
Haviam dito que ele traíra, e por mais que “Não” dissesse, não era isso o que se queria ouvir. E desde os tempos mais remotos, até as crianças sabem que só se escuta o que se quer, não era assim sua mãe dizia, sua vó contava, seu avô brigava? Todos os dias. Em suas reminiscências, ele esquecia do tudo em volta. Ou seria vazio em volta. Esperava o mundo. E ele, tão vagabundo, cabeça baixa no meio da arquibancada.
A platéia ou o júri ou a Inquisição, cada qual com um par de mãos a levantar umas tabuletas brancas e vermelhas conforme achasse bom ou ruim o argumento, observando cada passo daquele homem outrora forte, agora sombra de si mesmo. Via que ele se mexia, mas mexia muito pouco, com medo do barulho, podiam mal interpretar, maldavam tudo mesmo, melhor era ficar inerte. Via que ele não sorria, mãos nos bolsos, olhos no chão, fazendo vezenquando uma menção de ir já falar. Abria a boca, mas não dizia.
Por que eu fiz por que fizeste, por quê.
“Porque o silêncio não vai responder e resolver é que não vai dizer coisa alguma”, ele pensa, mas com muito cuidado, podem ouvir. “As mãos não vão se tocar, o mundo vai haver, haver tudo no mundo”. Ouve uma mulher na platéia dizer ao homem do lado,
“você não vai ficar pra ver?”
Ele iria dar a resposta, explicar seus porquês. E fazer toda a força do mundo, e contar porque resolveu. Falar sobre o tempo e o vento, o querer e o ter, as escolhas, os cílios, as bolhas nos pés.
Entre dois desatinos, perdera a razão, a aventura e a sorte: sentia que se perdera nas folhas de um livro que alguém acabara de abandonar. Ou acabar. Talvez se tenha lido inverso, in verso ou não. Boa noite e boa sorte, tinham dito, e teriam mesmo querido dizer?
“Querido, olhe, ele vai dizer seus porquês.”
“E por que eu ouviria, mulher?!”
O mundo permanecia confabulando se inocentava, se mandava à morte, afinal aquele Fernando ali bem no centro havia cometido crime mui sério: abdicara de fazer sentido. E como assim alguém escusar-se coerência? E o mundo, como ficava? Nunca aceitável, conduta absurda, iria ao centro, iria ouvir. O mundo ia levantar as toscas tabuletinhas, brancas e vermelhinhas, dizendo sim ou não, morrendo de vontade de julgar. Vai morrer, após ter julgado? Se não julgar, morre, morre tudo, então corre o tempo, o povo vota.
E ele, ele olhava em volta e não sabia se dizia. Como não dissesse nada, de lá da platéia alta veio alto cavalheiro com um papel branco na mão. Falaram assim em voz baixa, tão baixa que platéia alguma ouvia.
Cabisbaixo como sempre, mas agora firme como poucos, segurou na mão esquerda a caneta, um grito contido ainda olhando os vazios nos olhos alheios: calhou por assinar um contrato, retrato de sua retratação,

“eu aceito, eu,

Fernando.”

Só não sabia é o que estavam lhe pedindo pra aceitar. Uma vez aceitado, passos contados, saía pelo fundo, esperando qualquer coisa que, sabia, não aconteceria.

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Um comentário:

Lia disse...

ô menina!
tu escreve bem demais.
a acusação ao Fernando tem todo o sentido, diferente dele, que só faz sentido ao procurar em você mesma as palavras por ele ditas que você quer dizer mas não sabe como.

ah! e postarei logo.
ando meio sem muito tempo esses dias.
hehe
:)